Tinteiro #015: Se Capitu não traiu, Machadinho é Alencar!
"The Boys" jorra sangue e outros fluidos nesta edição do Tinteiro, que traz também uma pérola da descendência de Bob Dylan e um bocadinho de literatura brasileira
Salve, gente fina. Eis aí mais uma missiva deste que vos rabisca mal-traçadas. Além da sanguinolência de The Boys, a literatura brasileira tá em peso nessa edição do Tinteiro, com odes a Fernando Sabino e Machado de Assis, além do insuspeito crítico literário Dalton Trevisan. E continuem me mandando dicas, por favor! Eu demoro a assistir, ler, ouvir, mas assisto, leio, ouço!😉😘
UM FILME
MICROSSINOPSE: Lugar melhor para discutir a luta de classes do que em um cruzeiro para super-ricos não há.
EU ACHO QUE: “Triângulo da tristeza” (Ruber Östlund, 2022) foi possivelmente meu filme predileto naquele ano. Uma sátira esperta, mordaz e sarcástica sobre os conflitos de classe (e gênero) e as relações de poder. O diálogo bêbado do capitão (Woody Harrelson) com o milionário industrial (Zlatko Buric, “I sell shit”) é um primor.
ONDE VER: “Triângulo da tristeza” está disponível no Prime Video.
UMA SÉRIE
MICROSSINOPSE: Bando de desajustados decide confrontar um grupo de super-heróis ególatras com tendências fascistas, patriotas de conveniência e braço armado de um grande conglomerado totalitário cujo interesse final é o controle total da sociedade de consumo.
EU ACHO QUE: “The Boys” (2019-), que chega agora a sua quarta temporada, é uma série ultraviolenta e exageradamente escatológica, com humor mórbido e cenas de sexo gratuitas e grotescas, tudo a serviço da crítica à escumalha da extrema-direita global que ora viceja. Vale, portanto, cada gota de sangue e leite.
*ONDE ASSISTIR: “The Boys” está disponível no Prime Video.
UM SOM
Conhecido por ser filho de Bob Dylan e líder dos ótimos Wallflowers, nesta ordem, Jakob Dylan tem um verdadeiro diamante em sua discografia. Sem medo do pai, em seu primeiro álbum solo, “Seeing things” (2008), desfila um rosário de belíssimas canções polidas entre o folk e country - que, aliás, desvelam raízes da música dos Wallflowers -, com produção elegantérrima do mágico T-Bone Burnett. Ouça. Não vais pular uma faixa.
QUER EM VÍDEO? DYLAN JR. NO DAVID LETTERMAN EM 2008.
UM FRAGMENTO
“- Quando chegamos, fez questão que eu subisse até lá, pra ir olhar no barraco a verdade do que havia dito. E era mesmo, pude ver com estes olhos: uma escadinha e cinco meninos maltrapilhos e famintos, amontoados naquele barraco como bichos, uma miséria danada. E tudo morrendo de fome. A mulher dele nos olhava com aquele jeito parado de quem já acostumou a sofrer. Fiquei revoltado, mas que é que se pode fazer? Só mesmo assaltando. É uma panela de pressão, os ricos não estão ligando, mas isso mais dia menos dia vai estourar.
Extraído da crônica “O gato sou eu”, do escritor, jornalista e editor mineiro Fernando Sabino, que recomendo (mas só àqueles adeptos a relatos que fazem parecer banal o ofício de narrar o mundo, de traduzir na realidade mais comezinha os tantos mistérios da existência humana).
PS: Caso lhe interesse saber qual é a maior de todas as crônicas jamais escrita, leia aqui “A última crônica” do Sabino, a perfeição em seiscentas e poucas palavras.
UM MICRORRELATO
Destacam-se entre os milionários no baile beneficente da Sociedade Filantrópica Sol de Góes as mãos ásperas de Paulo Militão, pedreiro sem-par cujos honorários giram em torno de US$ 1 mil a hora para pequenos reparos de mansões, em madeira ou alvenaria, ele mesmo inquilino de uma bolha de ar que flutua no coração de uma bola de gude que trago no
bolso esquerdo
do meu
casaco.
W. Del Guiducci, 19/02/2020, extraído do perfil @instantextos no Instagram.
CRONIMÉTRICAS
Assim começa a crônica desta semana na “Tribuna de Minas”:
“Teca não pode ver um cachorro na rua que quer levar pra casa. Não os cachorros de bom porte, limpos, saudáveis e de feições alegres. Interessam-na os estropiados, desnutridos, aqueles que andam de cabeça e orelhas baixas de tanto levar chute de pinguço em porta de botequim. Teca os vê, chega em casa e não consegue dormir, porque fica imaginando onde eles estarão, o que estará sendo feito deles, se têm o que comer, se alguma moléstia os afeta. Por isso Teca começou a recolher os cachorros. Leva para casa os mancos, os sarnentos, os cegos de um olho, os esquálidos.”
O restante você pode ler neste link.
🔊Se preferir escutá-la na voz deste crooner, é só clicar aí abaixo e será redirecionado para o player.
POSTEI E SAÍ CORRENDO
A respeito do recém-descoberto (de novo) talento narrativo de um certo Joaquim Maria Machado de Assis por graças de uma influencer 🤮 americana, e do consequente renascimento da inútil polêmica em torno do debate Capitu traiu-não-traiu Bentinho, recordo-me de um ensaio de Dalton Trevisan (“Capitu sem enigmas”, do livro “Dinorá”, 1994) em que consta o arrazoado definitivo sobre o chatíssimo tema. Ali ele questiona se “nosso Machadinho ocuparia mais da metade do livro com as manhas e artes de dois sublimes fingidores, sem que haja traição?”. E dá uma aula magna de ficção: “um personagem não espirra em vão, na página seguinte tosse com pneumonia”. Pois que fale o Vampiro de Curitiba:
“Você pode julgar uma pessoa pela opinião sobre Capitu. Acha que sempre fiel? Desista, ó patusco: sem intuição literária. Entre o ciúme e a traição da infância, da inocência, do puro amor, ainda se fia que o bruxo do Cosme Velho escolhesse o efeito menor? Pó, qual o grandíssimo tema romanesco de então, as fabulosas Ema Bovary e Ana Karenina. A um pessimista, viciado no Eclesiastes, toda mulher (“mais amarga do que a morte”) não é coração enganoso e perverso, nó cego de “redes e laços”? Inocentar Capitu é fazê-la uma pobre criatura. Privá-la de seu crime, assim a perfídia não fosse próprio das culpadas? Já sem mistério, sem fascínio, sem grandeza. Morreu Escobar não das ondas do Flamengo e sim dos olhos de cigana oblíquos e dissimulados. Por que os olhos de ressaca, me diga, senão para você neles se afogar? [...] Se a filha de Pádua não traiu, Machadinho se chamou José de Alencar.”
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