Tinteiro #007: A alegria de limpar banheiros
O mais recente filme de Wim Wenders, assassinos seriais 'in love' e a voz rascante de Beth Hart estão nesta edição
Oi, pessoal! Chegou a nova edição do Tinteiro, com algumas novidades novas e algumas novidades velhas, inclusive um microrrelato de 2015 que, acredito, tenha ficado de fora do meu “Curto & Osso” - mas em breve constará de um livro didático para estudantes de nono ano. Espero que esta newsletter sirva ao divertimento de vocês. E me escrevam, estou esperando!
UM FILME
MICROSSINOPSE: Poderia um dia perfeito ser composto pela rotina de acordar, olhar o céu, limpar banheiros públicos, fotografar folhas, limpar mais banheiros, lavar-se em um banho comunitário com desconhecidos, jantar, ler e dormir? Pergunte a Hirayama-San.
EU ACHO QUE: “Dias perfeitos” (Wim Wenders, 2023) é um filme de uma singeleza tocante. O rigor monástico do protagonista na busca pelo contentamento diante das pequenas coisas é o avesso da vida contemporânea, pautada pela pressa, pelo consumo e pela artificialidade.
ONDE VER: “Dias perfeitos” está disponível no Mubi.
UMA SÉRIE
MICROSSINOPSE: Escritor em crise criativa embarca com um velhinho em suas inimagináveis memórias de sexo, tesouras e assassinatos na Côte D’Azur.
EU ACHO QUE: “Borboletas negras” (2022) é um barato porque propõe uma abordagem pouco usual para histórias de assassinos em série. No fundo, é a história de um amor avassalador que, para preservar sua chama, admite até mesmo a morte (dos outros).
ONDE ASSISTIR: “Borboletas negras” está disponível na Netflix.
UM SOM
Beth Hart é uma cantora visceral, extremamente competente, cuja carreira é irregular na mesma medida. Interpretou Janis Joplin em um musical, tem uma importante colaboração com Joe Bonamassa, fez um tributo ao Led Zeppelin em 2022… mas é também uma belíssima compositora, cujo trabalho autoral, me parece, é subvalorizado. A discografia começa em 1996. Escolhi “37 days” (2008), mas a lista é vasta.
QUER EM VÍDEO? AÍ A BRABA DESFILANDO CLASSE COM JOE BONAMASSA EM “I’D RATHER GO BLIND”, GRAVADA ORIGINALMENTE POR ETTA JAMES.
UM FRAGMENTO
“Se ele for O - e penso que poderia ser - deve estar cansado de nós. Afastou-se para cuidar de sua horta e de outros que não somos nós. Deus quer é distância do que nos tornamos. Gritamos o seu nome porque ele descobriu bondade em outras criaturas, e se foi: nossa voz o ensurdece. Gritamos sem a precisão da árvore, do vento, da onça. Toscos, arranhamos a garganta, ferimos os ouvidos do céu. Somos um erro da palavra e aquele que É não lê por linhas tortas. Tu me entendes, Inocêncio?”
Extraído do romance “O Ausente”, de Edmilson de Almeida Pereira, que estou lendo neste momento e que recomendo (mas só àqueles que possam se afeiçoar pelos escritos de um poeta-narrador cuja ourivesaria retorce a sintaxe até tirar das palavras sentidos que nem elas sabiam que gestavam).
UM MICRORRELATO
Lá do quarto eu ouvi a voz da minha vó. Meus irmãos dormiam pesadamente. Eu me levantei do colchão de capim e caminhei até a cozinha. Sentado no banco, meu pai que era preto tremia esbranquiçado, olhos parados, boca aberta, enquanto a vó lhe servia chá de melissa na caneca de esmalte branco - disso eu nunca me esqueci. O homem tremia igual vara verde. A vó me viu espreitando e, com um aceno de cabeça, ordenou que eu voltasse pra cama.
O que houve nós jamais soubemos, mas nunca mais o velho botou o nariz pra fora da porta depois de o sol se deitar.
W. Del Guiducci, 28/07/2015
CRONIMÉTRICAS
Assim começa a crônica desta semana na “Tribuna de Minas”:
“Lili arrumava as caixas de mudança andando de um lado para o outro, abrindo e fechando gavetas. A fina poeira revolvida por aquele alvoroço privado se dava a ver nos fachos pálidos de sol que gretavam pelas persianas. Acabara de comprar seu primeiro apartamento, bem menor que aquele em que vivia de aluguel, mas que era seu.”
O restante você pode ler neste link.
Se preferir escutá-la na voz deste escrevente, é só clicar aí abaixo e será redirecionado para o player.
POSTEI E SAÍ CORRENDO
“Podemos tagarelar sobre a democracia, mas, na verdade, uma criança pobre na Inglaterra tem pouco mais esperança do que tinha o filho de um escravo ateniense de emancipar-se até a liberdade intelectual de que nascem os grandes textos."
O excerto acima, do escritor e crítico Arthur Quiller-Couch, foi brilhantemente citado por Virginia Woolf no ensaio “Um teto todo seu”, publicado em 1929. Foi usado em defesa da tese de Dona Virginia de que as mulheres não estavam em pé de igualdade com os homens para escrever poesia porque não tinham as mesmas condições materiais para tanto. Verdade inconteste, como dificilmente contestável foi a observação original de Quiller-Couch. Afinal que gênio, sem saber o que comerá na janta, alcançará sua “liberdade intelectual”?
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Excelente como sempre!!!👏👏👏
Essa Beth Hart é braba, hein. Não conhecia. Curtindo muito (inclusive uma música com o Slash!)