Tinteiro #002
A beleza do amor imperfeito em "Vidas passadas", os perrengues de um desmemoriado, Baudelaire e, oba!, tem novo dos Black Crowes 🐦⬛
Salve, gente querida! Aqui é seu amigo Del passando para entregar a segunda edição do Tinteiro, a serviço de sua distração. Vivam bem!
UM FILME
MICROSSINOPSE: Hae Sung e Nora quase foram namoradinhos na infância. Mas daí Nora emigrou para os Estados Unidos e Hae Sung sobrou na Coreia do Sul. Pensando sempre um no outro e no que teria sido se não fosse o “se”, eles estão prestes a se reencontrar 20 anos depois.
EU ACHO QUE: “Vidas passadas” é um desses filmes leves e bonitos que, sem promover apocalipse emocional, traz o amor romântico para o mundo da vida (como ela é). E como tudo na vida (como ela é), se o amor der certo, maravilha; se não der, não será o fim dos tempos. Fará alegria de quem curtiu “Once” ou “Lost in translation”.
ONDE ASSISTIR: “Past lives” está no Prime Video.
UMA SÉRIE
MICROSSINOPSE: Galã acorda desmemoriado após ser atropelado por uma carreta num fim de mundo no deserto australiano. Agora o que lhe resta é saber porque toda hora aparece alguém querendo matá-lo.
EU ACHO QUE: “O turista” tem roteiro ligeiro - embora meio capenga - e o mistério vai desnovelando sem embromação nem afobação. A mocinha (Danielle Macdonald), uma policial meio atrapalhada e fora dos padrões hollywoodianos, rouba a cena.
ONDE ASSISTIR: Na Netflix (embora produzido inicialmente pela HBO).
UM SOM
Fazia 15 anos os Black Crowes não lançavam um álbum. “Happiness bastards”, ainda bem, não oferece nada que não se espere dos corvos. Gravado e lançado pela gravadora dos irmãos Chris 🐦⬛e 🐦⬛Rich Robinson [a.k.a. Faísca e Fumaça], o disco, pra cima, traz a boa e velha energia setentista, com muitas guitarras, coros e teclados analógicos, que fizeram dos Black Crowes uns queridos alienígenas na cena rock dos anos 1990, venerando o blues quando tudo era grunge.
QUER EM VÍDEO? A RAPAZIADA NO JIMMY FALLON OUTRO DIA:
UM FRAGMENTO
“Aproximei-me do balcão e tomei um pequeno vaso de flores, e quando o homem reapareceu ao abrir a porta eu deixei cair, perpendicularmente, meu engenho de guerra sobre o rebordo posterior de seus ganchos, e, como o choque o derrubou, ele acabou de quebrar sob seu dorso toda a sua pobre fortuna ambulatória que resultou na fragorosa barulheira de um palácio de cristal destruído por um raio.
E, ébrio de minha loucura, gritei para ele, furiosamente: “A vida é bela! A vida é bela!”
Essas brincadeiras nervosas não são sem perigo e pode-se, às vezes, pagá-las caro. Mas o que importa a eternidade da danação a quem achou em um segundo o infinito da alegria.”
Extraído do poema “O mau vidraceiro”, do livro “Pequenos poemas em prosa” (ou “Le Spleen de Paris”, 1869, póstumo), de Charles Baudelaire, ao qual volto sempre que posso e recomendo (mas só àqueles chegados a uma boa crônica disfarçada de poema, ou quem sabe um bom poema disfarçado de crônica).
UM MICRORRELATO
Depois de dois dias procurando Seu Magno, acharam o corpo afogado no açude. Foi Betinha quem viu. Um metro de água só. E nadava como um peixe. Setenta e cinco, passou mal e caiu aí, certeza. E a tristeza: sozinho, tadinho, enxada na mão. Pior que a dor do infarto traiçoeiro, disso Betinha sabe, foi a última visão dos velhos olhos tomados de catarata: o pasto tomado de mato, a capina que jamais terminou.
W. Del Guiducci, 22/03/2024
POSTEI E SAÍ CORRENDO
“Pensar, analisar, inventar [escreveu-me também] não são atos anômalos, são a respiração normal da inteligência. Glorificar o ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e alheios pensamentos, recordar com incrédula estupefação o que o doctor universalis pensou, é confessar nossa languidez ou nossa barbárie. Todo homem deve ser capaz de todas as ideias e entendo que no futuro será.”
Esse trecho pescado no conto “Pierre Menard, autor de Quixote” (1944), de Jorge Luis Borges, que li há uns meses, me parece, harmoniza lindamente com este microrrelato do mexicano Julio Torri, que Deus o tenha:
A humildade premiada
Em uma universidade pouco renomada havia um professor pequeno de corpo,
rabicundo, tartamudo, que, como carecia por completo de ideias próprias, era muito
estimado na sociedade e tinha diante de si um futuro brilhante na crítica literária.
O que lia nos livros à noite, oferecia a seus discípulos na manhã seguinte.
Tanta facilidade de repetir coisas com exatidão era motivo de desespero entre os mais
renomados construtores de máquinas falantes.
E assim transcorreram longos anos até o dia em que, por força de tanto repetir ideias alheias,
nosso professor teve uma própria, uma pequena ideia própria, reluzente e bela como um peixinho vermelho através do cristal irisado de um aquário.
É bom começar o final de semana com uma frase de Baudelaire fresca na cabeça.
Massa demais, meu bom. Show!!!